Uma cidade em negação

Em algumas escolas de Psicologia, diz-se que os indivíduos, quando defrontados com vícios ou traumas, inconscientemente empregam mecanismos de defesa que tentam pacificar sua personalidade, amortecendo-a ou suprimindo o sofrimento associado. Das diversas classificações existentes para estes mecanismos, se entende também que alguns mecanismos são mais primitivos, mais crus, e por isso às vezes trazem mais dificuldade para vencer os problemas do indivíduo.

Dentre estes mecanismos mais crus, reconhecemos a negação, que consiste em o indivíduo simplesmente se recusar em aceitar uma realidade externa perceptível por sentir-lhe ameaçadora, e argumentar contra estes estímulos angustiantes afirmando que eles não existem, buscando resolver a ansiedade associada através da recusa em perceber ou dar-se conta dos aspectos mais perturbadores da realidade observada. Também pode englobar a transferência de responsabilidade a outros indivíduos, mascarando a sua incapacidade em resolver o problema.

Todo mundo conhece isso: é aquele parente alcoolatra que não acha que a bebida está lhe fazendo mal; é a mulher vítima de violência doméstica que defende o marido por pior que ele seja. Em verdade, todos nós, em algum grau, já usamos estes mecanismos alguma vez na vida por pouco tempo que tenha sido; resta saber se o indivíduo algum dia quebra o ciclo, reconhece o problema e faz algo a respeito.

Pois posta esta introdução, postulo que é razoável aplicar uma extensão dessa mesma interpretação às organizações que emergem da ação de vários indivíduos. Seja na escola que rejeita ou hostiliza o aluno que traz a tona os problemas dela, seja na empresa que não ouve seus funcionários e continua tomando decisões erradas, o básico do mecanismo da negação está lá. E nem precisamos nos restringir às organizações humanas bem definidas e de propósito específico; em verdade, este texto é pra falar sobre como algo tão caótico como uma metrópole de 4 milhões de habitantes como a que habitamos também implementa a negação como forma inconsciente de lidar com seus problemas.

É negação quando fingem não existentes problemas reais demonstráveis, comprováveis; é negação quando relevam os impactos destes problemas. Também é negação quando se transfere a culpa para outras organizações ou mesmo à má-sorte.

A negação da vez, o motivo deste post, é ver gente dizendo que “bah, pra quê esse corredor na perimetral, tá sempre vazio”, ou ver empresas de ônibus dizendo que o “serviço cumpre os horários determinados”, ou ver a prefeitura achando que está tudo bem, e que nada precisa ser feito, tudo isto enquanto pessoas perdem 32 minutos de seu dia tentando tomar um ônibus, falhando sucessivamente ao tentar embarcar vários veículos por conta de suas lotações excessivas.

Essas fotos, gentilmente cedidas pela Sara Yamazaki, circularam hoje no Facebook, e demonstram em termos indiscutíveis o triste estado do transporte público desta cidade. No caso dela, trata-se do embarque na linha T-11 na Terceira Perimetral, mais especificamente na estação existente no túnel sob com a Protásio Alves. Não tem como negar o impacto desse problema; se o indivíduo perde meia hora tentando entrar num ônibus, quantas meias-horas ele perde num ano? Quando lazer, estudo, consumo ou trabalho ele poderia ter realizado neste tempo? Quanto se perde em qualidade de vida e em crescimento econômico em nome de um sistema de transporte que se recusa a reconhecer suas ineficiências?

E percebam, não estou falando aqui de soluções mirabolantes e astronomicamente caras. Estou falando de um problema que vem se manifestando já faz mais de ano e para o qual NADA se fez de concreto. Existem pelo menos duas medidas simplérrimas, implementáveis em um tiro, que podem fazer pelo menos algum impacto sobre o problema, e mostrar que alguém está observando:

1) É notável que existe um gargalo na roleta; depreende-se então que podemos paralelizar a função da roleta, dotando os veículos de duas roletas instaladas lado-a-lado. A da direita, junto ao cobrador, seria utilizada pelos passageiros portadores de isenção/benefício ou pagantes em dinheiro; a da esquerda, atuando de forma automática, serviria aos passageiros portadores de cartão VT ou VA.

2) Também é notável que, nessa estação, embarcam muitos passageiros de uma vez só, e se perde um tempo considerável até que todos eles consigam entrar na única porta de embarque, sujeitos a filas na roleta. Ora, se é o processo de pagamento que causa o atraso, porque não adiantamos ele para o momento da entrada nessa estação? Percebam que, até mesmo em função da forma como foi desenhada, essa estação é uma candidata perfeita para isso, uma vez que o aceso a plataforma de embarque só é feito através das escadas e elevadores ali presentes. Isso não precisa esperar projetos tipo BRT ou coisa que o valha; dá pra implementar da noite pro dia – é só querer.

E se alguém está observando o problema, e pelo menos dando essa medidas mais simples, também pode aproveitar e começar a entender a dimensão da demanda e o ambiente da avenida. É inconcebível que nem sequer se fale ou se projete um VLT para esta avenida; esta solução está praticamente caindo de maduro ali.

Mas é uma cidade em negação, né? Não é à toa que acabo recorrendo a outro mecanismo para me defender dela, a fantasia.



Categorias:Descaso, Infraestrutura, Opinião, Sustentabilidade, VLT

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60 respostas

  1. Eu já tinha percebido esse problema logo que inventaram de misturar os bancos de idosos com os demais, atrás da roleta, na implantação do péssimo TRI. Aproximaram a roleta da porta e em muitas linhas, a fila q se formava dentro do ônibus, agora se forma fora, atrasando as paradas dos coletivos. Óbviamente isso foi pensado por alguém que não anda de ônibus.

  2. Eu já vejo como “aceitação”. Pegue por exemplo o pedestre. Ele tem todo o direito de atravessar a faixa quando o sinal está vermelho na via, mas ele insiste em “dar a vez” para o carro que faz a conversão a direita, por exemplo. Ele insiste em desviar pacificamente do carro que para em cima da calçada, do carro que anda pela calçada, do carro que faz conversão ilegal, da bicicleta que cruza o sinal, do carro que para em cima da faixa… Raramente tu vê algum pedestre se impondo, por simples aceitação. Ele aceita que a vida dele tem menos valor que a do cara no carro, e assim a faz a prefeitura.

    Quanto a perimetral, raramente eu costumo andar por lá, seja de ônibus, a pé ou carro. Uma vez voltei pra POA pela Av. dos Estados, as 18h30 de carro. Eu também pensei, “eu parado e essa pista de ônibus vazia”. É revoltante a quantidade risível de ônibus que passa pela perimetral na hora do rush, e é de se chorar a quantidade de gente que se empulera em cada um deles. No começo da perimetral, os ônibus já estão LOTADOS. No final da salvador frança, nenhum ônibus chega sem ter alguém de pé no último degrau da porta da frente…

    Já eu não costumo pegar ônibus lotado na Protásio. Me pergunto porque tão fazendo o “BRT” em um trecho reto de poucos kilômetros, que começa na rótula e termina do nada na saturnino de brito. Ninguém entra na rótula e desce antes da saturnino de brito…

    Porquê não tem BRT em toda extensão da perimetral, que já tem toda a estrutura pra isso? Porque ela já tem toda a estrutura pra isso… o bom de se fazer BRT em um trecho fraco da protásio é refazer todo o concreto, colocar os amigos empreiteiros pra trabalhar. É por isso que trincheiras, viadutos e duplicações são tão melhores para a mobilidade urbana que investir em transporte público. São quase 1 bilhão em obras viárias nessa cidade rolando neste instante. Alguma hora, o investimento nas eleições tem que retornar afinal.

    Na Protásio, o concreto já tá quase pronto, enquanto isso as paradas continuam INTOCADAS. O que impede de já ter iniciado a reforma nas paradas? O que impede de já terem começado as alterações nos ônibus?

    É brabo.

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