Falhas na manutenção do sistema de proteção teriam agravado a maior inundação da história

Especialista em drenagem urbana diz que deficiências da prefeitura ao lidar com o problema pioraram a situação

Ayrton Centeno* Brasil de Fato | Porto Alegre | 05 de maio de 2024
Edição: Katia Marko

“Tem que se trabalhar o sistema de proteção como um todo” – Foto: Jorge Leão

Com 40 anos de experiência em drenagem urbana, o engenheiro Augusto Damiani tem algumas explicações para as cheias que conflagram Porto Alegre. Uma delas é muito simples: crônica ausência de manutenção no sistema de proteção contra as cheias da Capital.

Ex-diretor do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) e do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), ambos da prefeitura porto-alegrense, ele conhece por dentro a estrutura que colapsou e expôs a cidade à maior inundação da sua história. Mestre em recursos hídricos e saneamento ambiental, ele deu sua interpretação para o fenômeno nesta conversa com Brasil de Fato RS. Confira:

Brasil de Fato RS – Porque Porto Alegre colapsou diante da chuva, repetindo, em versão agravada, a enchente de 1941? Por qual razão o Centro Histórico ficou alagado como não se via desde a primeira metade do século passado? É culpa da natureza simplesmente?

Augusto Damiani – Em setembro de 2023, vi que o DMAE teve várias dificuldades para fechar as comportas, não achou os parafusos, não conseguiu colocar as borrachas, encontrou asfalto em trilhos, teve que usar uma retroescavadeira para fechar as comportas. Agora, neste evento, os problemas se repetiram. Sei, por exemplo, que o DMAE tem no seu acervo técnico os projetos do DNOS (antigo Departamento Nacional de Obras e Saneamento) com o detalhamento sobre as comportas, as borrachas de vedação, os parafusos que garantem a estanqueidade das comportas. Poderá refazer um projeto com um ensecadeira de melhor qualidade.

Acredito que esse evento seja um marco para o DMAE para repensar organizacionalmente como se faz a gestão da drenagem, que possa fazer a reforma das comportas, recompor as borrachas de vedação, usar os parafusos, para que, havendo outro evento desses, possa estar preparado. Com os trilhos e com o motor de abertura e fechamento das comportas funcionando para que não se tenha que fazer ensecadeiras improvisadas com sacos de ferragem. Para que se possa ter tranquilidade e confiança.

O DMAE tem quase R$ 400 milhões em aplicações financeiras em vez de estar investindo (em obras)

BdFRS – O que aconteceu com o Departamento de Esgotos Pluviais, o DEP? O que a prefeitura fez com um órgão tão importante na prevenção das cheias? 

Damiani – Em 2017, o então prefeito (Marchezan Junior) resolveu fazer uma reforma administrativa aos moldes do governo dele. Naquela época, o DEP foi (dividido) para duas secretarias. O atual prefeito (Sebastião Melo, do MDB) resolveu transferir essas atribuições do DEP para o DMAE, cedendo seus funcionários para o DMAE sem que lá fossem criadas estruturas compatíveis. Logo, o DEP não existe mais. Existem as atribuições que agora são do DMAE…

BdFRS – E o que aconteceu com o DMAE, ao qual o DEP foi incorporado? Mais precisamente, que fim levou o seu corpo de funcionários?

Damiani – Nos últimos anos, o DMAE tem sofrido um enxugamento visando o projeto que está aí e que é a transferência da gestão da água para a iniciativa privada. Para isso é fundamental desqualificar a imagem da instituição junto à população para que se tenha uma opinião pública favorável dizendo que o serviço público é ruim e que o privado é melhor.

Um dos modos de fazer isso é reduzindo a capacidade de investimento, o que acontece no DMAE. Ele tem quase R$ 400 milhões em aplicações financeiras em vez de estar investindo, além do enxugamento do corpo técnico que vem perdendo servidores por aposentadoria, de tal forma que, hoje, temos apenas um terço do necessário (de funcionários) lá dentro. Isto faz com que fique difícil para o DMAE atender todas as coisas, inclusive a drenagem.

Marchezan Junior perdeu R$ 100 milhões a fundo perdido para modernizar 10 casas de bombas

“O que se precisa garantir é manutenção constante e alguma modernização quando necessária” / Foto: Divulgação Astec

BdFRS – Impressiona que o que aconteceu no ano passado na Capital – com as comportas emperradas, tendo que ser tracionadas por retroescavadeira – esteja se repetindo agora. Sobrou ferrugem e faltou governo?

Damiani – Sempre me perguntam se o sistema de proteção de Porto Alegre está ultrapassado. Não. É um sistema seguro, clássico, eficiente. O que se precisa garantir é manutenção constante e alguma modernização quando necessária. É lamentável que, em 2019, o então prefeito (Marchezan Junior) acabou perdendo R$ 100 milhões a fundo perdido que iriam modernizar 10 casas de bombas desse sistema. 

BdFRS – Como é o funcionamento das chamadas comportas por gravidade, que ficam submersas nos poços das casas de bombas, e o que aconteceu com elas desta vez? 

Damiani – As comportas por gravidade deram problema agora. O que são? As casas de bombas recebem a água das bocas de lobo e elevam essa água e descarregam num canal que vai por gravidade para o lago (Guaíba). Só que, quando chega lá no lago, tem uma comporta, uma espécie de basculante. A água que vem da cidade empurra a basculante e passa. Quando o lago levanta o nível, ela fecha por pressão da água e a água não entra. Acontece que algumas peças estragaram, caíram, e não sido feita a devida manutenção. 

Não se sabe porque passaram-se seis anos e (a comporta) ainda não foi consertada

Aquela casa de bombas 17, no Centro, ali perto da Igreja das Dores, que aparece agora em tudo que é reportagem, o que aconteceu ali? A comporta está danificada, a água voltou e transbordou para dentro da cidade. Isso poderia ter sido evitado. Desde 2018, existe um processo administrativo que tramita dentro da prefeitura para consertar aquela comporta. Não se sabe porque passaram-se seis anos e ainda não foi consertada.

Mas ainda era possível fazer uma medida paliativa que, não sei porque, não fizeram. Era colocar stop logs (elementos de controle de engenharia hidráulica usados em comportas para ajustar o nível de água) na saída da casa de bombas de tal forma que criasse uma barreira e a água não voltasse. Poderia ter sido feito e evitado esse transbordamento da cidade.

O sistema tem que estar sempre pronto para responder a qualquer evento crítico

BdFRS – O que é preciso fazer agora para evitar que Porto Alegre fique debaixo d`água novamente o que, pelo que se viu, pode ocorrer a qualquer momento? 

Damiani – A manutenção do sistema contra as cheias. A manutenção dos diques, com a verificação das suas cotas, a manutenção dos muros e de todas as casas de bombas. A partir daí, buscar recursos para modernizar as casas de bombas com automação, com a melhoria do sistema de controles e das comportas, o aumento da capacidade de vazão. Fazer também a manutenção periódica das tampas herméticas dos condutos forçados. Tudo para que o sistema esteja sempre pronto para responder a qualquer evento crítico. 

Se o Centro encher, o 4º Distrito também vai encher. E o contrário é verdadeiro

Não dá para fazer buscas de recursos pontuais para trabalhar em um bairro. Tem que se trabalhar o sistema de proteção como um todo. Não dá para fazer uma melhora, por exemplo, no 4º Distrito (região Norte da Capital) sem uma ação no centro da cidade, o centro vai encher de água. E se o centro encher, o 4º Distrito também vai encher. E o contrário é verdadeiro. Tem que se fazer manutenção e melhorias no sistema como um todo com manutenção de todas as casas de bombas, todos os condutos forçados para corrigir toda e qualquer anomalia.

Publicado sob autorização da Brasil de Fato
Link: https://www.brasildefators.com.br/2024/05/05/falhas-na-manutencao-do-sistema-de-protecao-teriam-agravado-a-maior-inundacao-da-historia



Categorias:Enchente, Muro da Mauá

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22 respostas

  1. Alguém conhece um documentário que fale sobre a construção do sistema de proteção de Poa, com imagens?

    Agora fiquei mais curioso em saber como foi projetado e construído…

  2. O lugar do Melo, do Marchezan, etc, é na cadeia!!!

    Sucatearam o DMAE, extinguiram o DEP que era responsável pela prevenção às enchentes, sem criar um serviço equivalente no DMAE. Melo investiu ZERO centavos em prevenção a enchentes em 2023 e 2024!!! Enquanto isso DMAE tem mais de 400 milhões de reais positivos em caixa, e deu lucro de mais de 30 milhões de reais no ano passado.

    Quero ver alguém explicar isso!

    • É preciso uma CPI para investigar isso tudo!

    • Não faz muito e eu passei na frente do DMAE ali pros lados do Higienópolis e tinha uma faixa “prefeito não privatize o DMAE”. Essa falta de investimentos sempre ocorre na fase pré-privatização para convencer a população que “o serviço não presta”.

      Se de fato essas informações do caixa do DMAE ter 400 milhões investidos e o sistema todo sucateado fica bem claro entender porque a Rosane de Oliveira (porta voz da prefeitura) fica repetindo o tempo que “não é hora de procurar culpados”. Vocês notaram como a RBS não para de repetir essa frase?

  3. Tinha que ser funcionário público defendendo o DMAE. Borracha feita há mais de meio século era a salvação para a enchente? A velha falácia de “sucatear serviços públicos”? Ora, se nenhum funcionário público do DMAE se manifestou nessas décadas contra essa suposta narrativa, são cúmplices.

    Além disso, venda de estatais gera caixa para outros investimentos. Vender estatal sucateada NÃO DÁ DINHEIRO. Falaram a mesma inverdade da Carris, essas duas empresas sempre deram prejuízo à população e ninguém é responsabilizado. E não adianta culparem prefeitos, pois estatais não crescem ou afundam em apenas 4 anos, a situação dessas empresas (AINDA BEM que a Carris já foi vendida) deve-se tão somente à incompetência do funcionalismo público.

    • Voltem neste comentário na próxima tragédia. Explicará muita coisa.

    • Borrachas se trocam periodicamente numa operação normal, o que claramente não foi feito

    • A borracha é a cereja do bolo. A questão é as válvulas que ficam submersas dentro do Guaíba e que deveriam impedir o retorno do esgoto pluvial e não funcionaram. Também não entendo porque o sistema todo é centrado na energia elétrica sendo que a energia elétrica é a primeira coisa a cair numa tempestade. Era melhor usarem geradores próprios a diesel, ate o zafarri tem um por loja, por que não um por casa de bomba?

    • Ele não falou nada de errado em relação às borrachas. Aliás, qualquer borracha de vedação é feita pra trocar de quando em quando, inclusive as de torneiras de casa.

    • Mais um liberaloco defendendo a privatização. Não basta o horror da CEEE Equatorial. Só quem é do serviço público sabe o quanto os políticos liberalocos destroem as estatais, para depois dizer que o “estado” falhou e vender a privatização como a solução de todos os problemas.
      Nem na desgraça essa gente faz mea culpa. Isso que sou favorável à privatização de aeroporto, telefonia, pedágios, mas água e esgoto, jamais!

      E a CEEE foi o caso mais claro e cristalino do horror que foi privatizar esse serviço e dos imensos prejuízos para a população e também para os empresários.

      Pior que os políticos extremistas que apoiam o Melo, montada nas fake news, vai reeleger o boca de sacola. Ele vai fazer bastante coisa: vai pintar o muro da Mauá, os portões e as casas de máquinas, em parceria com uma empresa de tintas, para não gastar dinheiro público (claro!); vai lançar um app em parceria com empresas da inovação, vai lançar um site e fazer uma bela festa de inauguração, sem gastar um real do dinheiro público para a alegria dos liberalocos. Triste ironia, mais pura revolta contra o que essa gente faz.

      Sem contar o Marchezan que deixou de usar um financiamento da Caixa para modernizar o sistema de enchentes, por que a prefeitura “perdeu o prazo”.

      https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/reportagem-matinal/marchezan-perdeu-recursos-sistema-protecao-cheias-porto-alegre/

      Triste. Revoltante chegar a esse ponto.

  4. O mais irônico de Porto Alegre é que a cidade, em tese, possui ótimos índices socioeconômicos, sendo a 2ª capital com maior renda e a 3ª capital com menor índice de pobreza do Brasil (perde só pra Curitiba e Floripa), além de possuir excelentes hospitais e instituições de ensino superior.

  5. Fosse tempo de guerra em outro país e fossem as águas da enchente o exército invasor que em dois dias submeteu uma cidade, os responsáveis pela incúria e negligência em cuidar das defesas iriam enfrentar a corte marcial ou o pelotao de fuzilamento. É o cúmulo do absurdo o que deixaram acontecer, embora fosse previsível, tendo em vista a clássica incompetência do serviço público em administrar eficientemente o que quer que seja, exceto as atividades de arrecadação de impostos. E vão surgir burocratas a dizer que se houvesse mais funcionários a cuidar dos dispositivos de proteção, o desastre não teria ocorrido, pois foi fruto de uma conspiração visando sucatear o DMAE para depois entregá-lo depreciado a um privado. Oras, se uma centena de funcionários nada viram ou nada fizeram, duas centenas só aumentariam a confusão. O serviço público não necessita de nenhuma teoria conspiratória para justificar o fraco desempenho. A solução segura para o futuro será passar a incumbência de zelar e operar o sistema de proteção contra enchentes a uma empresa privada porque, se não, os desastres com certeza se repetirão.

  6. Ok, todo mundo tem a sua parcela de culpa. Agora não adianta cada cão latir no seu quintal. Há uma tragédia climática sem precedentes e um dos tantos colaterais é aparecerem os dedos apontados. Que fique a lição e o Poder Público e a população façam muito melhor no futuro, pois o clima mudou e papos furados e proselitismos políticos não vão ser suficientes.

  7. Não resta dúvidas de que o que deveria ser sido feito, não foi! Vejamos que essa tragédia está se abatendo sobre uma das poucas cidades brasileiras que tem um sistema de proteção anti-cheias, bom quer dizer, que achava que tinha né, já que com esse caos descobriu-se que nunca fora suficiente nem adequado para fins de conter águas de enchentes de alto impacto real. Projeções de cenários como esse que ora se materializou nunca foram feitas né para que se pudesse aprimorar tal sistema,reformular todo o estrutural e aumentadar radicalmente as dimensões e capacidades de todos seus componentes. E havia gente se auto-promovendo deslumbrada com certas fantásticas ‘casas de bombas “novas”‘, que só nas imagens desse vídeo podem ser percebidas como estruturas arcaicas, mínimas, uff inadequadas e até bizarras, e gritantemente ineptas para gerar a proteção que o 4D e o centro tanto mereciam. A ver certa figura e suas façanhas, e o visu das tais ’novas e incríveis’ casas de bombas:

    :https://www.youtube.com/watch?v=7XBonkX99I0&t=4s

  8. Injeção letal para os culpados por este crime contra a humanidade.

  9. Não haverá grandes obras, nem mesmo as necessárias; Porto Alegre é um cidade que não tem responsabilidade para terminar sequer uma rua, quanto mais as obras faraônicas necessárias.

    Sejamos realistas, não haverá, não há dinheiro e muito menos a cultura do trabalho e compromisso.

    Com essa enchente fica óbvio algo que os leitores não irão gostar de ler pois a maioria é de poa e tem uma visão fantasiosa do local, porém uma verdade: Porto Alegre não tem mais condição de ser capital e está fadada no médio e longo prazo à debacle.

    Com as mudanças climáticas patentes, com o aumento do leito dos rios com essa enchente, tanto o Vale do Taquari quanto Porto Alegre se mostram inviáveis para enfrentar o futuro.

    Indústrias cada vez menos presentes, um setor de serviços decadente, uma população cada vez mais pobre e mal-educada, Porto Alegre com a enchente e as que virão certamente mostrou que perdeu o grande trunfo de sua recuperação, a orla, o quarto distrito, e partes baixas dos bairros circundantes ao centro.

    Tudo isso fica inviável de funcionar sem uma obras nos padrões alemão ou holandês, e não será feita porque exige bilhões ou porque a cultura é a das obras da copa. Mais fácil migrar; os prédios públicos do aterro estão todos fechados, tribunais, etc… é inviável uma capital assim. E vai piorar pois o aquecimento global veio para ficar.

    Assim sendo o governo deveria tomar em alguns anos a decisão realista de migrar a capital para a incólume e próspera Caxias do Sul, pólo industrial bem localizado. Porto Alegre falhou, foi mal planejada desde o começo. É só o meu desabafo.

    • Certamente, vc é o primeiro a correr quando o bicho pega.
      Pega tuas coisas e parte pra Caxias, por que aqui vamos precisar de pessoas que acreditam e fazem acontecer. A reconstrução não virá de pessoas fracas. Boa sorte!

    • Queria saber que blog é esse que tu frequenta em que as pessoas têm uma visão “fantasiosa” da cidade. Boa parte aqui diz que tudo tá errado e que nunca vai dar certo… Até enquanto estavam construindo a Orla alguns ainda diziam que nunca iria sair do papel.

      No mais, não faz o menor sentido esse decreto de “falência” de uma região urbana que tem a maior parte do seu território em terreno ‘seguro’ (não alagável), e que, apesar dos grandes problemas, tem toda infraestrutura de capital.

  10. Triste, mas temos todas lâminas de água, estáo assoreadas e/ou com bancos de areia, ou seja tem que dragar uns 5 metros.

    • O lugar do Melo, do Marchezan, etc, é na cadeia!!!

      Sucatearam o DMAE, extinguiram o DEP que era responsável pela prevenção às enchentes, sem criar um serviço equivalente no DMAE. Melo investiu ZERO centavos em prevenção a enchentes em 2023 e 2024!!! Enquanto isso DMAE tem mais de 400 milhões de reais positivos em caixa, e deu lucro de mais de 30 milhões de reais no ano passado.

      Quero ver alguém explicar isso!

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