Problema da água em Porto Alegre, muito além do cheiro e do gosto

Cettraliq foi interditada pela Fepam

Cettraliq foi interditada pela Fepam

Fepam suspende empresa de tratamento mas não esclarece o mistério da água que fede

Em maio, a imprensa publicou as primeiras reclamações de moradores: a água que saía das torneiras tinha cheiro e gosto de coisa podre. Numerosas queixas da região de Navegantes,  muitas outras vindas de diferentes bairros. Em poucos dias, chegou às manchetes. Era um grave problema de saúde pública.

Em agosto, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental suspendeu as atividades da Cettraliq, uma empresa que trata águas contaminadas de 1.500 indústrias, antes de devolvê-las ao Guaíba. Ela está dois quilômetros abaixo de  um dos pontos de captação de água para abastecer a população. E no seu entorno concentraram-se as reclamações ante a persistência do mau cheiro.

Na região onde está localizada a Cettraliq, no bairro Navegantes, sente-se um cheiro no ar que é identificado com o cheiro da água que sai da torneira.

A empresa foi posta sob suspeita e uma análise de seus efluentes foi feita sem nada de anormal constatar. Um dia depois de receber uma “visita técnica” com a secretária de Proteção Ambiental, Ana Pellini, à frente, a Cettraliq teve suas atividades suspensas.

“Que água é essa que estamos bebendo?”

O gosto e cheiro ruins não são as únicas questões que devem preocupar os moradores de Porto Alegre, quando se trata de água.

“Não há a garantia de que uma água sem gosto e sem cheiro seja segura para consumo. Muitas vezes a verdadeira contaminação realmente forte e prejudicial pode não alterar estas características da água”, afirma o engenheiro químico Tiago Centurião, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS.

Outro professor da Universidade, o engenheiro civil Miguel Sattler, pós-doutor em Ciências Ambientais Ligadas à Edificação afirma que a população não tem conhecimento das substâncias que está consumindo. “Toda embalagem de água mineral têm a declaração da composição química dessa água, mas tu não encontras estas informações sobre a água de Porto Alegre. Nós deveríamos saber a composição. Que água é essa que estamos bebendo?”, questiona Sattler.

Ser potável não é suficiente

Quando o DMAE afirma que a água que sai das torneiras em Porto Alegre é boa para beber, está baseado na portaria 2.914 do Ministério da Saúde, de 2011, que estabelece uma série de indicadores para que a água seja considerada potável.

Entretanto, diante da quantidade de novas substâncias que são sintetizadas a cada mês, o engenheiro químico Tiago Centurião pondera: “É praticamente impossível uma portaria acompanhar as mudanças nos padrões tecnológicos. Muita coisa evoluiu desde 2011 e uma releitura desta portaria é importante”.

Além disso, Centurião afirma que não se pode ignorar as percepções sensoriais dos consumidores. “Os parâmetros estão adequados, mas nós consumidores percebemos que tem algo errado. Está com cheiro ruim, gosto ruim, dando irritação nos olhos e na pele.”

Cafeína na água

O pesquisador da Unicamp Wilson Jardim, publicou um estudo sobre a presença de contaminantes emergentes na água de diversas capitais brasileiras. O pesquisador utiliza a cafeína como indicador da presença de outras substâncias.

Em seu levantamento, Porto Alegre foi a capital com maior presença de cafeína na água. Entretanto, é necessário que se leve em conta o hábito cultural do chimarrão.

Além deste, outros trabalhos de pesquisa apontam para a presença de outras substâncias na água, como anti-inflamatórios.

O químico Marcos Henrique Calvete, do DMAE, explica que atualmente já está se cogita incluir novas substâncias para serem monitoradas, cafeína é uma delas.

Segundo Calvete, existem tecnologias capazes de remover estas substâncias, porém o custo é elevado. “A cidade tem que avaliar isso. Existem tecnologias, mas são tecnologias que têm um custo, será que a cidade está disposta a bancar?”, questiona Calvete. E conclui: “O tratamento é um processo de larga escala e de eficiência limitada”.

Tratar o esgoto sai mais barato

Para o professor Thiago Centurião, a origem dos problemas está no saneamento, no tratamento do efluente. “Para cada real investido em tratamento de esgoto, economiza-se cinco reais  no tratamento da água. São investimentos historicamente feitos de forma capenga no Brasil”, afirma Centurião.

Porto Alegre hoje trata 66% do seu esgoto antes de despejá-lo no Guaíba, segundo o DMAE. Apenas 18% era tratado no início de 2014, quando a Prefeitura implementou o PISA (Programa Integrado Socioambiental).

Para cada real investido em saneamento, economia de cinco reais no tratamento da água / Foto O Alvoradense
Entre os componentes preocupantes, estão os chamados contaminantes emergentes. São substâncias químicas novas, consequentes de hábitos humanos de consumo e que são lançadas na rede de esgoto, como produtos de limpeza, cosméticos e medicamentos.

Centurião cita um exemplo preocupante, o crescente consumo de anticoncepcionais: “Só em Porto Alegre podemos estimar 250 mil mulheres que todos os dias expelem uma urina altamente com alta concentração de hormônios anticoncepcionais. E é uma dificuldade enorme constatar isso nas análises convencionais.”

Alguns autores consideram seculares os métodos utilizados nas estações de tratamento de água. O modelo atual estaria mais focado em uma contaminação orgânica, não incorporando novas tecnologias como oxidação avançada, osmose inversa e ultrafiltragem.

Além disso, entre os afluentes do Guaíba estão três dos dez rios mais poluídos do país, segundo levantamento realizado em 2015 pelo IBGE: Sinos, Caí e Gravataí. São rios que passam por cidades com despejo de resíduos industriais e onde o nível de tratamento do esgoto doméstico é baixo. Outro afluente, o rio Taquari, passa por regiões de produção agrícola, onde pode haver contaminação da água pelo uso de agrotóxicos.

Água do Jacuí só em 2020

A principal medida apresentada pela Prefeitura foi a mudança do ponto de captação da estação São João para um ponto no Jacuí, que apresenta os menores índices de poluição na bacia do Guaíba.

A obra tem custo estimado de R$ 150 milhões e previsão de conclusão de 30 meses. O projeto não é novo, mas não havia sido colocado em prática em função do custo.

O projeto em fase de licenciamento ambiental junto à Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) consiste na escavação de um túnel a 40 metros de profundidade, com 1,8 mil metros de comprimento, ligando a Estação de Abastecimento de Água Bruta (Ebab) São João/Moinhos de Vento a um ponto entre o Saco do Ferraz e o Saco dos Assombrados, no Jacuí.

O orçamento inicial era de R$ 85 milhões, mas foi corrigido para R$ 150 milhões. Os trabalhos devem ser custeados por recursos do DMAE e com financiamentos ainda não obtidos. As obras dificilmente começarão antes de 2018, em função dos estudos e ajustes. Desta forma, a população de Porto Alegre só consumirá água captada no Jacuí em 2020.

Para o professor Centurião, a estratégia faz sentido como medida emergencial, mas não diminui a importância do tratamento dos efluentes antes do despejo.  “Se não cuidarmos do Jacuí, ele vai se tornar cada vez mais poluído e essa mudança vai acabar não adiantando nada.”

Há quase duzentos anos…

Auguste de Saint Hilaire, sábio francês, passou seis dias em Porto Alegre, a caminho de Montevidéu, em 1820.  Ele percebeu já naquele tempo a gravidade da questão do saneamento na cidade. Alguns trechos de seu diário:

“Esta cidade fundada há 50 anos, mais ou menos, já conta com uma população de 10 a 12 mil almas. (…) Pode ser considerada o principal empório da capitania”

“Poucas casas possuem jardins e muitas não têm nem mesmo pátio, redundando isso no grave inconveniente de serem atiradas à rua todas as imundícies, tornando-as uma extrema sujeira”

“As encruzilhadas, os terrenos baldios e principalmente as margens do lago são entulhadas de lixo”.

“Apesar de ser o lago o único manancial de água potável, utilizado pela população, consentem que se faça nele o despejo das residências”.

Empresa diz que também é vítima

“A decisão foi recebida com surpresa”, disse a empresa em nota oficial. Segundo ela, na visita técnica, do dia anterior, “foram sugeridas melhorias e prazos para adequação do processo de tratamento”.

Em julho, a Fepam já havia determinado adequações.

Estiveram na empresa, além da Secretária de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado, Ana Pellini, fiscais da Fepam, liderados pelo engenheiro Mário Soares, chefe da divisão de resíduos sólidos, e Renato Chagas, da divisão de controle de poluição industrial, além do professor da UFRGS, Antônio Bennet, e da técnica da Corsan, Cristina Costa.

Diz ainda a nota da Cettraliq:

“A comitiva conheceu toda a tecnologia empregada no tratamento de efluentes de terceiros, de emissões atmosféricas e o destino dos resíduos sólidos gerados, e reconheceu, na ocasião, que os odores e gosto da água de Porto Alegre não são proveniente da empresa”.

A empresa informa que “no período de 51 dias úteis foram realizadas 21 vistorias, o que equivale a uma vistora a cada 2,4 dias”.

“Ao todo foram sete coletas de aproximadamente 20 amostras em diversas etapas do sistema de tratamento dos efluentes, inclusive o uso de equipamento tipo Scanner para identificação de tubulações e canalizações enterradas no solo”.

“O efluente tratado não apresentou nenhum parâmetro fora dos padrões exigidos em sua Licença de Operação e legislação vigente”.

“A Cettraliq propôs o uso do processo de desinfecção do efluente tratado, através da tecnologia de Ozônio antes do lançamento na rede pública e providenciou a análise de bactérias Actinomicetos no seu efluente tratado nos laboratórios Umwelt Biotecnologia Ambiental, Laboratório Mérieux (Bioagri), em São Paulo e Laboratório Green Lab, de Porto Alegre”.

“A empresa libera 150m³/dia de efluentes tratados, volume equivalente a 1 litro/segundo, para vazão de 1 milhão de litros/segundo do rio Guaíba. Atua com 40 funcionários além de consultores terceirizados”.

“A Cettraliq torna público sua contribuição, de todas as formas possíveis, na busca para identificar as prováveis causas do gosto e sabor da água de abastecimento, tratada pelo DMAE, pois a empresa, tal qual a população de Porto alegre, também é vítima deste problema”.

Recentemente, o DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgoto) chegou admitir que talvez nunca venha a descobrir qual o agente causador destas mudanças e, consequentemente, se ele oferece algum risco à saúde da população.

A Fepam encomendou análise de um laboratório de São Paulo. O relatório foi inconclusivo, não conseguiu detectar o que estava causando as alterações. Ainda assim, o DMAE seguiu afirmando que a água fornecida por ele é perfeitamente potável, sem oferecer qualquer risco à saúde.

Jornal Ja



Categorias:Lago Guaíba, Meio Ambiente, Poluição Industrial

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2 respostas

  1. apos construir uma boa casa para morar , ja quero ir embora desta cidade, violenta , suja e agora o pior: agua impropria para consumo humano.

  2. Quem passa na av da Legalidade/ Freeway sob a ponte do guaiba, percebe que naquele exato ponto o odor que vem das galerias de esgoto proximas a trensurb é muito semelhante ao da agua.

    De onde vem esses residuos, por que se acumulam ali e por que são lançados estes esgotos ao lado das bombas de captaçao e nada é feito?

    Segredos que só porto alegre tem….

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