‘Brasileiro fica encantado com cidades europeias, mas não reproduz soluções aqui’, diz Lerner


Jaime Lerner defende revisão na concepção das cidades brasileiras. Foto: Daniel Katz

O urbanista Jaime Lerner, conhecido pelas soluções que levaram Curitiba a ser considerada “cidade modelo” na década de 90, defende uma revisão da concepção de cidade pelo poder público e pelos brasileiros que vivem em áreas urbanas.

Para ele, o encantamento dos brasileiros com cidades no exterior se dá por soluções que nem sempre são bem-vindas quando aplicadas no Brasil, como a ênfase no transporte público e na bicicleta como meio de transporte e a convivência de populações de diferentes perfis socioeconômicos nos mesmos bairros.

‘Como virei consultor de tecnologia na Europa com o que aprendi na escola pública’
“Ele (brasileiro) fica encantado, mas não reproduz as soluções aqui. Quando chega de volta ao Brasil, volta a querer separar, dar prioridade ao automóvel, volta a se entregar a soluções que não vão fundo no problema”, afirma o ex-prefeito de Curitiba (1971-1974, 1979-1983 e 1989-1992) e ex-governador do Paraná (1995-2002).

Lerner defende ações rápidas e pontuais para resolver os problemas das cidades – classificadas por ele como “acupuntura urbana” – e que demandam, diz ele. coragem e iniciativa das autoridades.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista de Lerner à BBC Brasil.

BBC Brasil – Curitiba já foi considerada uma cidade-modelo, a mais verde do planeta. Olhando em retrospecto, o que não foi feito para que esses reconhecimentos fossem mantidos?

Jaime Lerner – O que acontecia em Curitiba era um compromisso de inovação constante – no transporte público, meio ambiente, todas as áreas. E quando se para de inovar, as coisas decaem um pouco. Mas não é grave, pode ser retomado – a qualidade de vida que existia aqui pode ser retomada.

BBC Brasil – Para isso, o que deve ser feito? Para muita gente, as cidades não têm mais solução.

Lerner – Nem sempre a inovação é tecnológica. O que falta é a inovação na concepção das cidades. Existe hoje uma moda de falar em cidades inteligentes, smart cities, cidades competitivas e outras coisas mais. Isso muitas vezes é só “gadget”, não é isso que importa. Atualmente os três grandes problemas da cidades ainda são os mesmos: mobilidade, sustentabilidade e a coexistência.

Quando se analisa mobilidade, você vê o mundo inteiro tentando soluções com base em tecnologia e performance, ou seja: carros sem motoristas – os driveless cars -, os carros inteligentes, e se esquecem de que o carro continua ocupando o mesmo espaço na cidade. E isso é grave: tecnologia e performance não diminuíram a dependência do automóvel.

O problema de mobilidade é uma questão de concepção da cidade. A cidade tem que ser uma estrutura de vida, trabalho, lazer, mobilidade, tudo junto. Toda vez que você tenta separar as pessoas – morando em um lugar, trabalhando em outro, forçando as pessoas a deslocamentos demorados e difíceis, as coisas não acontecem bem. Quando se separa a população por renda, idade, religião – tudo isso não contribui para a qualidade de vida da cidade. Precisamos trabalhar mais na concepção.

BBC Brasil – Quando viajam, os brasileiros elogiam as cidades estrangeiras por iniciativas que, quando propostas aqui, encontram resistência. Por que isso acontece?

Lerner – O brasileiro às vezes visita uma cidade europeia e fica encantado, mas ele vê isso que mencionei: a mistura de renda, de funções – tudo isso que é importante na vida de uma cidade. Ele fica encantado, mas não reproduz as soluções aqui. Quando ele chega aqui, volta a querer separar, a dar prioridade ao automóvel, a se entregar a soluções que não vão fundo no problema.

Por outro lado, há o excesso de burocracia que, em geral, é uma rotina que aqueles que não têm conhecimento procuram forçar, e que acaba com a criatividade. Essa burocracia serve para aqueles que, em vez de fazer, criam normas à procura de um protagonismo sem conhecimento. Isso também prejudica muito as soluções nas cidades no Brasil.

E outra coisa: como os governos não fazem, então toda vez que uma vizinhança resolve fazer algo num parque, ajuda uma praça ou cria uma solução por iniciativa que parte da própria comunidade, as autoridades acham que estão descobrindo o mundo.

A gente não pode se afastar da boa concepção da cidade, do comprometimento com a inovação e principalmente com a vida das pessoas, com o meio ambiente. Tudo isso vem junto com a cidade, para que ela realmente seja uma resposta de qualidade de vida, de futuro, de oportunidades.

O Brasil teria todas as condições para dar grandes exemplos para o mundo. No entanto, nunca tivemos tão perto – e nem tão longe.

O Jardim Botânico foi um dos parques construídos na gestão Lerner em Curitiba. Foto: Divulgação

BBC Brasil – Mas dá para atribuir isso somente à falta de vontade política?

Lerner – Na verdade, é o medo de começar. É querer ter todas as respostas e aprovação de todos que leva a decisões políticas equivocadas. Isso é comum hoje no Brasil. O Brasil poderia ser um grande exemplo na área de mobilidade, mas não é porque seguimos complicando o problema, procurando implantar aquilo que em outros países já é obsoleto. Esse movimento de copiar o obsoleto faz você comprá-lo como última novidade.

BBC Brasil – O metrô seria obsoleto, na sua avaliação?

Lerner – O metrô é obsoleto porque é demorado, caro e não é a única resposta de um bom sistema de mobilidade. A boa resposta tem que estar na adoção de sistemas integrados onde se tenha algumas cidades com duas ou três linhas de metrô, mas com grande parte do deslocamento na superfície.

Em São Paulo, mais de 80% das pessoas se deslocam na superfície e poderíamos ter um sistema de qualidade na superfície, poderíamos “metronizar” o ônibus. Com uma ou duas linhas de metrô, se for necessário, com um bom sistema de superfície, com bicicleta e carro compartilhados. A integração de todos esses modais é que leva a um bom sistema de mobilidade.

BBC Brasil – Em São Paulo, o incentivo do uso da bicicleta promovido pela gestão anterior encontrou muita resistência, assim como outras medidas. Que avaliação o senhor faz do conceito de cidade do ex-prefeito Fernando Haddad (PT) e da atual gestão de João Dória (PSDB)?

Lerner – Eu considero ambos altamente qualificados. O problema no caso do Haddad foi a equipe dele. O Dória está procurando fazer a cidade a agir com a iniciativa privada e com a população. O Haddad teve boas iniciativas, mas muito pouco foi efetivamente realizado, como as propostas de uso do solo. Coisas que não acontecem não têm efetividade.

O mais importante de tudo é coragem de começar. A gente vê hoje que muitas cidades querem ter todas as respostas antes e ao querer ter essas respostas não começam nunca. As coisas que aconteceram em Curitiba, assim como em outras cidades, se deram porque inovar é começar. O importante é começar.

O sistema BRT (Bus Rapid Transit) de Curitiba foi adotado em diversas cidades do mundo. Foto: Pedro Ribas

BBC Brasil – Mas há uma busca por unanimidade, e as cidades são diversas, habitadas por pessoas muito diferentes. Como conciliar os interesses?

Lerner – Se você quer fazer acontecer uma coisa, você tem que propor uma ideia, um projeto, um cenário, em que todos – ou a grande maioria – entendam como desejado. Se entenderem como desejado, irão ajudar a fazer acontecer. Por isso que o que falta nas cidades é proposta, ideia. Às vezes a ideia nasce dos responsáveis pela política, às vezes nasce dos técnicos, e às vezes da própria comunidade. Não importa. O importante é começar a fazer algo e ter esse bate-e-volta necessário.

O planejamento é uma trajetória, onde você começa, mas tem que deixar espaço para que a população corrija quando não estiver no caminho certo. São coisas que podem ser constantemente corrigidas – o que não pode é a omissão de tentar.

Ouvi coisas de arrepiar no Brasil: metrôs em cidades para resolver o problema da Copa do Mundo. A Copa do Mundo foi um desastre, não só para o futebol como para as cidades que seguiram essas diretrizes de mobilidade, de fazer uma linha de metrô em Teresina, ou ligar um aeroporto a um estádio de futebol – soluções caras e que não atendiam a população. Estamos vivendo uma época nova, quando as coisas na Olimpíada caminharam bem melhor.

Sou a favor de soluções rápidas, o que chamo de “acupuntura urbana”. Acupuntura é uma ação pontual, uma agulhada que consegue conferir energia para a cura. A mesma coisa em relação à cidade – são algumas intervenções pontuais necessárias e que devem ser feitas rapidamente para ajudar no processo de planejamento.

BBC Brasil – E isso se daria em que áreas, que tipo de “acupuntura” seria essa?

Lerner – Em todas as áreas – mobilidade, meio ambiente, e por aí vai. Temos feito muitas cidades no mundo inteiro, desde projetos aqui no Brasil, como em Porto Alegre, as propostas para a região metropolitana do Rio de Janeiro, algumas cidades em Angola, outros projetos no México. É importante que as coisas aconteçam.

Para te dar uma ideia, aqui nós usamos acupuntura também para testar a primeira linha do sistema de transporte BRT e foi a primeira vez no mundo. Hoje em dia nós temos no mundo inteiro 250 cidades com o BRT implantado e 154 milhões de passageiros por dia – e isso começou em Curitiba.

Lerner defende uso de bicicletas como alternativa de mobilidade. Foto: Kaique Rocha

BBC Brasil – Atualmente há no Brasil alguma cidade com uma solução que seja um modelo, e que possa ser reproduzida, assim como Curitiba foi há alguns anos?

Lerner – No Brasil, algumas coisas aconteceram bem no Rio de Janeiro, porque houve coragem. Além de Curitiba, gostaria de citar o exemplo de Medellín, na Colômbia, e também de Bogotá, a Cidade do México, Seul, Istambul e 250 cidades na China, Estados Unidos e Europa que adotaram o BRT, que é um caminho mais rápido para se melhorar a qualidade do transporte, e com gasto muito mais baixo. Então você pode fazer um sistema de boa qualidade, em menos de três anos, a um custo de 20 a 50 vezes mais barato que o metrô.

BBC Brasil – Em Curitiba, que parte teve a educação para que seu conceito de cidade fosse considerado o desejado pela maioria? Houve campanhas de reciclagem e personagens criados pela prefeitura para incentivar crianças a mudar o comportamento sobre o meio ambiente, por exemplo.

Lerner – Sempre tive atenção muito grande em ensinar as cidades para as crianças – porque se elas entenderem as cidades, irão respeitar mais. Mas tem que ter conceito. A concepção é o mais importante e tive a sorte de ter uma equipe de jovens profissionais – arquitetos, técnicos, engenheiros ,- gente que não tinha medo de começar uma ideia. E surgiram tantas ideias – como a da reciclagem do lixo, que foi um sucesso.

Hoje tenho certeza ao dizer que a resposta está na cidade quando se fala em sustentabilidade. Não adianta a gente criar grandes acordos entre vários países do mundo, que têm políticas e maneiras de usar a energia muito distintas – não dá para tentar igualar problemas da Índia com os dos Estados Unidos.

Mas na cidade podemos resolver. Se todos nas cidades usassem menos o automóvel, separassem o lixo, e morassem mais perto do trabalho, o problema de sustentabilidade e de qualidade de vida já estaria resolvido. É na cidade que podemos dar uma resposta mais rápida e melhor, conscientizando todas as

Néli Pereira – BBC Brasil em São Paulo
19 março 2017



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16 respostas

  1. Curitiba outro nível. Gaúcho não gosta de ouvir isso mas é verdade. A cidade é limpa, as pessoas não jogam lixo no chão, no mercado as pessoas empacotam as compras e nas praças de alimentação os Curitibanos retiram as bandejas da mesa após a refeição.
    Em POA as pessoas pensam ser um desaforo retirar o próprio lixo da mesa.
    Sem falar no cuidado com os parques que fazem a Redenção passar vergonha, na organização do transporte público e todo o restante.


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    • Não generalize nem exagere Fernando…
      Não é necessário que o cidadão retire sua bandeja da mesa. É muito mais confortável que um funcionário do local retire.
      Lixo na rua sempre vai haver e é responsabilidade da prefeitura limpar constantemente.
      Na minha empresa, qualquer coisa que dê errado é culpa unicamente minha e de mais ninguém pois sou eu quem administra.
      Absolutamente tudo é culpa da má administração e não dos cidadãos de Porto Alegre.

  2. Ficam encantados porque lá não tem jerivá e nem fiação aérea xP

  3. O problema é que nosso transporte publico não incentiva, a segurança menos ainda, acho que ônibus com ar, mais agilidade e um metrô já levariam mais pessoas para o uso, mas não temos isso.

    Pra piorar, como é preciso andar algumas quadras para poder pegar um ônibus, existe um risco alto de ser assaltado em qualquer canto do Brasil.

    O brasileiro quer ver a mudança primeiro, antes dele mudar seus hábitos.

    Mas claro que pra ajudar tem o pessoal contra tudo, que vai para a Europa, Estados Unidos, acham tudo muito lindo, mas não acetam essas coisas por esses cantos.

    Sobre os cobradores, concordo, assim como nos postos de combustíveis, acho que o Brasil é o único lugar do mundo onde ainda existe isso, claro que por causa dos sindicatos.

    Já empacotadores, não são todos os mercados que tem, enquanto as pessoas exigirem isso, o Zaffari vai continuar pagando salário para eles trabalharem nisso.

  4. Baita entrevista, esse cara é um gênio.
    Ninguém quer fazer o básico por aqui, todos querem um projeto de metrô pra fazer seu nome e/ou mamar nas propinas do contrato.

  5. Se conseguissem reproduzir só a educação eu já me dava por satisfeita!
    E nem precisa ir pra Europa: chegam em Gramado já viram gente… em compensação, voltam pra Porto Alegre e parece que saíram de jaula.

    • Eu acredito que a limpeza e organização de Gramado induz a pessoa a respeitar mais. Assisti uma entrevista de um diretor de escola nos EUA que conseguiu melhorar o nível de ensino e reduzir os incidentes de indisciplina com limpeza, organização, obras de arte pelos corredores… apenas com fatores estéticos.

      • É como a teoria do vidro quebrado. As pessoas tendem a manter limpo e organizado algo que está em perfeitas condições, já com algo sujo, elas não se melindram ao sujar mais, pois a deles é “apenas mais uma sujeirinha”.

  6. Recentemente tive uma discussão com uma pessoa que foi para a Europa e se encantou com o fato das próprias pessoas colocarem suas compras na sacola ou as próprias pessoas pagarem sua passagem no transporte público, sem cobrador. Essa pessoa fica escandalizada com a possibilidade de tirar o cobrador de dentro do ônibus ou de eliminar os empacotadores de supermercado. Tem coisas que eu realmente não entendo.

    • Nem é o fato de eliminar empacotador, eu diria de ter que empacotar mesmo!
      Na fila do Zaffari tem gente que fica injuriada senão tem o mucamo pra por o pacote de pão na sacola… cai os braços né?!

      • Fora que se tivéssemos mais self-services, nossos produtos poderiam ser mais baratos, pois não pagaríamos o custo embutido do salário do frentista, do empacotador, do cobrador, que existem nos nossos produtos e serviços.

      • No brasil tem até lei proibindo “self service” em postos de gasolina. Foi feito para proteger o emprego dos frentistas – disse o autor da lei

    • Isso é muito comum, mas isso nunca será mudado por nós.
      Acredito que ninguém pode vir e dizer “vamos tirar os empacotadores, os cobradores e os frentistas”. Isso tem que acontecer ao natural. Tem que ser um problema para a empresa de ônibus contratar alguém para que a EMPRESA pense em tirar o cobrador. Só assim vamos conseguir passar por cima de leis e sindicatos que protegem esses empregos.
      O ponto é, enquanto houverem cobradores, haverão sindicatos, leis e empregos.

  7. O Interessante é que na su atuação política, como prefeito e governador, este “Grande Visionário” parece ter feito o mesmo: as mesmas práticas da velha política patrimonialista que domina o Estamento Burocrático que manda no Brasil. Constam na sua “trajetória” vários episódios de Improbidade administrativa com algumas condenações…..”Faça o que eu digo mas não faça o que eu faço”. Baita Marketeiro, isto sim!

    • Concordo, é verdade que não destoa muito das nossas velhas raposas políticas, todavia… Está lá o resultado do seu estilo de ênfase no urbanismo civilizado de governar. Curitiba, linda, atraente, retumbante, com seus problemas sim, mas com um cenário atraente, bem diferente de POA e da maioria das metrópoles-lixo brasileiras.

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