ARTIGO: O projeto básico nas licitações de obras públicas, por André Luiz Mendes

Deficiência nos projetos emperra o PAC e qualquer plano de desenvolvimento

André Luiz Mendes*

A questão do projeto básico –que será aqui referido apenas como PB– parece, finalmente ter ocupado posição de destaque nos debates sobre a contratação de obras públicas no Brasil.

Com o incremento das ações de controle na última década –o Tribunal de Contas da União (TCU), A Controladoria-Geral da União (CGU), o Departamento de Polícia Federal e o Ministério Público Federal (MPF) criaram ou estruturaram áreas especializadas em fiscalização de obras nos últimos 10 anos–, as fragilidades de execução desses empreendimentos afloraram, mas os acalorados debates daí advindos concentram-se em temas como aditivos contratuais, alterações de objeto e “jogo de planilha” (artifício que consiste em superavaliar itens do orçamento que terão quantitativos aumentados no decorrer da obra e subavaliar os itens que tendem a ter quantitativos reduzidos), ou seja, nas consequências dessas fragilidades e não em sua principal causa: a deficiência dos projetos usados nas licitações.

Inúmeras têm sido as manifestações sobre as deficiências dos projetos das obras públicas brasileiras, provenientes das mais diversas fontes, como representantes de entidades públicas e privadas, consultores e especialistas.

O “Jornal do Senado” do dia 19 de março de 2009 registra que Paulo Safady Simão, presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), alertou para atrasos em obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), devido à falta de projetos técnicos: “em muitas obras, foram feitos apenas projetos muito básicos, que no meio do caminho precisam ser revistos”, frisou.

A revista da Editora Pini “Construção Mercado”, edição de abril de 2009, traz a seguinte afirmação do engenheiro Maçahiko Tisaka, autor de diversas publicações sobre orçamentos de obras, em artigo intitulado “Por que o PAC não decolou”: “Os projetos básicos que acompanham o edital de licitação estão longe de atender ao que está previsto na alínea IX, do art. 6º, da Lei nº 8.666/93, seja por deficiência de concepção, seja por insuficiência de dados necessários para a elaboração de um orçamento estimativo condizente com a realidade”.

A mesma revista, em sua edição de fevereiro de 2007, contém as seguintes afirmações de José Roberto Bernasconi, presidente do Sinaenco-SP: “A perda de capacidade de investimento do governo em infraestrutura reduziu drasticamente as contratações de projetos para obras públicas. Para piorar, as obras existentes são caracterizadas pelo improviso ou pela falta de detalhamento, até mesmo nas grandes capitais do país. […] É moda decidir fazer a obra sem projeto. Essa é a maneira menos inteligente e mais equivocada de fazer qualquer empreendimento, principalmente aquele que usa recursos públicos. É preciso tempo para o desenvolvimento dos projetos de engenharia, mas de repente se atropela tudo e muitas vezes o projeto é contratado pelo próprio construtor”.

No voto que fundamentou o Acórdão nº 1983/2008 TCU-Plenário, o relator, ministro Marcos Vilaça, resumiu muito bem o problema assim se manifestando: “Observo que o ponto central destes autos se refere à matéria com que o Tribunal tem se deparado repetidas vezes e que, infelizmente, não tem merecido a devida atenção dos responsáveis pelas obras públicas: a elaboração de um projeto básico de qualidade e preciso o suficiente para o adequado desenvolvimento técnico e financeiro do empreendimento.” O ministro completou:

“Projeto básico deficiente é fórmula infalível para a colheita de toda a sorte de problemas na condução da obra.”

Parece não restar dúvida, portanto, da necessidade de adoção de medidas que garantam um mínimo de qualidade aos PBs usados nas licitações de obras públicas. Para tanto, bastaria que fossem elaborados cumprindo estritamente aquilo que estabelece o art. 6º da Lei de nº 8.666/93 e as frequentes revisões de projeto tornar-se-iam praticamente desnecessárias, minimizando a ocorrência de aditivos e quaisquer outros tipos de alterações contratuais. O problema, porém, é que se consolidou no mercado uma interpretação, absolutamente míope, do conceito de PB adotado no inciso IX do já referido art. 6º do estatuto de licitações. A melhor acepção do termo “básico” –fundamental, principal, essencial, conforme o Dicionário Aurélio– parece ter sido substituída por algo como provisório, preliminar, secundário. Certamente não foi isso que a lei estabeleceu como demonstra uma breve análise dos dispositivos legais que cuidam do assunto.

O estatuto de licitações vigente antes do advento da Lei nº 8.666/93 era o Decreto-Lei (DL) nº 2.300/86, que, em seu art. 5º, definiu PB como sendo: “O conjunto de elementos que defina a obra ou serviço ou o complexo de obras ou serviços objeto da licitação e que possibilite a estimativa de seu custo final e prazo de execução”.

Observe-se que o mencionado DL dedicou singelas duas linhas para a conceituação de PB. Por sua vez, a Lei nº 8.666/93 entendeu necessário dedicar algo da ordem de 35 linhas para conceituar o mesmo objeto! Absteve-se aqui da transcrição do inciso IX de seu art. 6º exatamente por ser demasiadamente longo e conhecido de todos aqueles envolvidos com o tema, mas, certamente, não se pode conceber que o conceito tenha permanecido inalterado. Entender de modo diverso seria ferir o princípio basilar da hermenêutica jurídica, segundo o qual a lei não contém palavras inúteis, ou seja, as palavras devem ser compreendidas como tendo alguma eficácia. Há outro detalhe que não pode passar despercebido nesta análise: enquanto o DL nº 2.300/86 estabelecia que o PB deveria possibilitar a estimativa do custo da obra, a Lei nº 8.666/93 foi explícita ao exigir que o orçamento detalhado em planilhas que expressem a composição de todos os custos unitários da obra fosse sua parte integrante, conforme se depreende da leitura do art, 7º da aludida lei.

“Qualquer engenheiro orçamentista sabe que estimativa de custo é algo muito diferente de orçamento detalhado, exigindo, este, informações completas sobre o objeto que se pretende construir.”

É provável que o fator a propiciar a divergência de interpretações seja o caráter genérico da conceituação contida no atual estatuto de licitações, visto que seria aplicável a qualquer empreendimento. Assim, para melhor elucidar a questão, faz-se conveniente tomar um objeto como exemplo. Uma obra de edificação facilita que se analisem quais seriam, na prática, os elementos constitutivos de seu PB e quais procedimentos têm sido adotados.

Há órgãos que licitam, e, infelizmente, não são raros, uma edificação apresentando, a título de PB, apenas as plantas-baixas, cortes e fachadas de arquitetura. Esse seria, de fato, apenas o PB de arquitetura, e não o PB da obra! A existência apenas da peça técnica arquitetônica permite a estimativa do custo da obra, uma vez que quantitativos dos itens de projetos ainda não disponibilizados –estrutura e instalações, por exemplo– podem ser apenas estimados a partir dela. Tal procedimento, portanto, seria admissível somente sob égide do DL nº2.300/86, pois não há como elaborar orçamento detalhado contendo a composição de todos os custos unitários sem dispor dos projetos completos.

Tão arraigado está esse equívoco de interpretação sobre o que exatamente constitui um PB, que o Projeto de Lei Complementar (PCL) nº 0332/2007, ora em tramitação na Casa Legislativa, prevê a exigência de projeto executivo para as licitações públicas, medida desnecessária se houvesse estrita observância do que já preceitua a lei.

Outro equívoco, muitas vezes cometido, é se evocar a Resolução nº 361/91 do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea), ao se avaliar o que caracteriza um PB. Apesar de ter forma detalhada o conceito de PB, não se pode ignorar que esse normativo foi editado em 1991, quando ainda vigorava o DL nº 2.300/86. Seu conteúdo,



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7 respostas

  1. Pablo

    Ótimo exemplo, Portugal enquanto possuía as colônias para explorar através do trabalho escravo, era um grande país, logo após o fim das colonias verificaram que tudo que ganharam das colônias enviaram para a indústria Inglesa. É um exemplo clássico, mas que poucos se lembram.

    Agora, se esta situação não se resolver, nunca teremos um crescimento sustentável. Não é só no público que teremos problemas, mesmo que for impulsionado o crescimento ele esbarará na falta de mão de obra qualificada, não estou falando só de engenheiros, por exemplo o polo naval de Rio Grande teve que importar soldadores do norte e nordeste brasileiro, simplesmente porque não se tinha aqui.

    Quando se pensa que para formar um tecnólogo de bom nível necessita-se de no mínimo 3 anos e um engenheiro, um geólogo e outros de nível superior 5 anos, se vê o problema que se tem pela frente.

    Há também nas áreas das ciências exatas também uma dificuldade de se criar cursos de Engenharia, o estoque de professores disponíveis no mercado simplesmente esgotou. Mesmo em Universidades de prestígio, quando se abre um concurso para professor, simplesmente não aparece profissionais.

    Estamos e continuaremos a pagar caro (figurativamente e realmente) pela falta de profissionais da área.

  2. Rogério,

    Quando eu penso no Brasil em relação à parte técnica fico bem desanimado…

    1. Portugal se tornou império através do comércio e não através da engenharia e nós carregamos essa herança maldita.
    2. As crianças recebem aula de pessoas que foram estudar pedagogia porque não gostavam de física ou matemática (na maioria das vezes). Daí as crianças chegam à escola confundindo força e peso, massa, distância, velocidade…
    3. O salário de advogados é muito mais altos e que engenheiros ou técnicos por mais competentes que sejam… Engenheiros são forçados para áreas administrativas porque ‘um subordinado não pode ganhar mais que seu chefe’ (Carreira Y).

    É triste porque isso depende de concursos, cargos públicos e leis que não vão beneficiar engenheiros uma vez que não são feitas por engenheiros.. Isso aliado ao egoismo e ao corporativismo.

  3. Simon

    Faltou a referência ao autor, tomo a liberdade de colocá-la:

    *André Luiz Mendes é engenheiro civil e Especialista pela Universidade de Brasília (UNB) em Auditoria de Obras. Atualmente está lotado no cargo de secretário de Fiscalização de Obras e Patrimônio da União do Triibunal de Contas da União (TCU). Texto orginalmente publicado em agosto de 2010 na revista “Capital Público”.

  4. Pablo e demais

    O Brasil está pagando caro toda o desprezo que teve durante décadas do trabalho técnico.
    Se perguntarem para qualquer, mas para qualquer mesmo, candidato de qualquer partido sobre os motivos que levaram seus antecessores a não fazer nada, muitas vezes tendo recursos, virá a frase padrão.

    -Falta de vontade política!

    Aí se resume a ignorância dos nossos governantes em todos os níveis e todos os partidos. Há uma espécie de desprezo pelo trabalho, o trabalho do arquiteto, do engenheiro e de todos aqueles que se envolvem na realização de obras.

    Vou dar um exemplo que perpassa todos os últimos governadores do nosso estado, me resguardando assim de assumir cores partidárias.

    Há mais de duas décadas a possibilidade de fazer projetos de irrigação dentro de uma só propriedade praticamente está esgotado, e todos sabem que é necessário grandes projetos de irrigação no nosso estado. Agora o que passa, para se fazer estes projetos que envolvem interesses particulares (ou também vão contra interesses de particulares) o estado deveria ter um grupo profissional de técnicos desde agrônomos a engenheiros, economistas, biólogos, sociólogos,….. Todos estes com capacidade de desenvolver projetos que visassem a economia do Rio Grande do Sul, entra governo e sai governo e a “vontade política” é reafirmada, porém quando é o chegado o momento de colocar “o guizo no gato” a onde estão os técnicos. Existem boas empresas de consultoria para realizar os projetos executivos, porém estes projetos necessitam no mínimo de um “Termo de referência” e este que dá a partida de tudo tem que necessariamente ser feito pelo poder público.

    Vamos uma simulação de perguntas e respostas que podem ser feitas a qualquer um de nossos governantes, e podemos começar com uma afirmação que talvez tenha sido feita por todos os governadores nos últimos vinte anos:

    – Precisamos e faremos obras de irrigação (a vontade política).

    Alguém poderia perguntar:

    – A onde, quantos quando e a que custo?

    A resposta standard vem logo:

    – Isto é uma questão técnica.

    Muito bem, se isto é uma questão técnica, quem as resolve?

    – Os nossos técnicos, óbvio!

    Que técnicos? A onde estão? Qual a infraestrutura que possuem? Qual a liberdade de escolha de áreas? Podem contrariar interesses de algumas pessoas?

    Todos já sabem as últimas respostas, Os técnicos que as secretarias possuem, são mal remunerados, desmotivados (os chefes sempre são uns CCs que não entende nada de nada) e sem a mínima infra-estrutura para fazer algum projeto (mapeamentos, dados, equipes de campo para levantamentos, etc, etc e etc.). Quanto as duas perguntas tem respostas óbvias, são decisões “políticas” (aqui no mal sentido), pois contrariar interesses na escolha de áreas e lugares para investir é deixado para os políticos (junto com os arrecadadores da campanha eleitoral).

    Em resumo, se quisermos sair do século XX para ingressarmos no século XXI, devemos estruturar a área técnica dando inclusive independência e não deixando que os cargos de chefia sejam ocupados por pessoas que entendam mais de fundo partidário do que do trabalho que deveriam estar coordenando.

    • Muito bom! É bem isso!

      Daí há pressão popular por ciclovias, por exemplo, a prefeitura faz um monte de bobagens, as pessoas percebem e nos perguntamos: Onde estão os técnicos? Da próxima o Fortunati vai pensar duas vezes em fazer as coisas no grito sem análise técnica.

      Quando entra-se na questão mobilidade há uma tonelada de falhas! Me arrisco a dizer que não há análise estatística nenhuma do tráfego. Daí a EPTC muda o sentido de uma rua e não muda nada, duplica-se outra e não muda nada, constrói-se viaduto e não muda nada… Querem fazer tudo empiricamente sem sem análise TÉCNICA, é o que dá!

      • Pablo

        Eu não quis citar a prefeitura, pois na linha da incompetência de gestão o nosso Prefeito está acompanhado por todas as esferas da União e todos os partidos políticos, ou seja, a incompetência não é privilégio do Fortunati.

        As ciclovias são um ótimo exemplo, mas se procurarmos a nível estadual e federal acharemos também belíssimos exemplos de obras sem projeto, que acabam inúteis ou simplesmente com um custo de 2 a 3 vezes o anunciado (não vou dizer orçado, porque na realidade o que fazem não é um orçamento, é uma fantasia).

  5. Muito bom! Gostaria de chamar a atenção para dois pontos.

    “as obras existentes são caracterizadas pelo improviso” – Olhem o time-lapse da colocação da viga do Aeromóvel.

    “fachadas de arquitetura” – Releiam o post “viaduto estaiado e a IAB é contra” e prestem atenção nos comentários.

    Aqui está tudo escrito de forma ampla e objetiva.

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