A Criminalização da Massa Crítica: mais uma tentativa de desmobilização dos movimentos sociais no Brasil

Temos acompanhado atentamente a tentativa de algumas redes de comunicação do Estado de criminalizar o movimento Massa Crítica de Porto Alegre.

Desde que o Ministério Público, a pedido da Empresa Pública de Trânsito e Circulação (EPTC), abriu inquérito civil para investigar “possíveis irregularidades na ordem urbanística” (trancamento de ruas pelos participantes para a sua passagem) com base em vídeos registrados das câmeras de segurança espalhadas pelas ruas da capital, várias manchetes têm sido veiculadas com o objetivo de criar um conflito entre os ciclistas e a população.

Para quem não sabe, Massa Crítica ou Critical Mass é uma celebração da bicicleta como meio de transporte, que acontece toda a última sexta-feira do mês, reunindo dezenas, centenas ou até milhares de ciclistas para ocupar seu espaço nas ruas e criar um contraponto aos meios mais estabelecidos de transporte urbano.

Por sua vez, criminalizar é tipificar a prática como um delito penal, enquadrando-a como uma ação contrária às regras sociais e jurídicas perfeitamente passível de penalização.

Frisamos que não é de hoje que o movimento social brasileiro é tratado como caso de polícia pelos governos e por uma boa parte da imprensa. Percebe-se que, mesmo após vinte e sete anos da abertura democrática e vigência dos direitos fundamentais, ainda convivemos com resquícios herdados dos tempos do regime de exceção.

Nas últimas décadas foi construído no imaginário comum que, todos aqueles que não seguem um padrão de conduta imposto pelo sistema, são contrários a ele. No fundo é isso: quem se manifesta e se mobiliza é considerado agressor, baderneiro, fora da lei e estereotipado como violento.

Trata-se de uma tentativa de desqualificar os atores e sujeitos populares, domesticando-os e intimidando-os. Recordamos, como exemplo recente, o Secretário Municipal que, em setembro passado, dirigiu-se aos ciclistas e cicloativistas que protestavam no Largo Glênio Peres como “pessoas menos qualificadas”.

Vale dizer que o movimento social sempre cumpriu um papel importantíssimo na história do país, impulsionando debates importantes com vistas a reconhecer direitos e garantias no Brasil. Podemos citar, como exemplo, o Movimento dos Sem Terra (MST) que foi criminalizado por suas ações contra o latifúndio improdutivo e pela luta na aplicação do princípio da função social da propriedade. O Magistério Estadual e o CPERS também sofreram processos de repressão e criminalização por parte do Governo Estadual anterior por pleitearem melhores condições de trabalho e reajuste salarial. E o que dizer da luta pela legalidade da Marcha da Maconha que, após intenso debate, somente foi autorizada após julgamento na ADPF 187 no Supremo Tribunal Federal?

Trata-se de apenas alguns casos recentes de criminalização dos movimentos sociais, mas poderíamos citar inúmeros outros.

Esses movimentos sociais, distintos em seus objetivos, mas próximos em suas causas, procuram expor as suas lutas retirando-as da invisibilidade para promover o debate.

Esse é o mérito de um Estado Democrático de Direito. Basta lembrar o pedido feito publicamente pelo sociólogo Boaventura de Souza Santos, na Assembléia Legislativa, no 10º Forum Social Mundial de Porto Alegre para que o Ministério Público arquivasse todas as ações civis públicas ajuizadas para proibir as marchas sociais e buscar o fechamento das escolas itinerantes do Movimento Sem Terra (MST). Boaventura justificou que é o debate que fortalece a democracia e produz a transformação social.

Para termos uma idéia, a Revista Time, considerada uma das mais influentes do mundo, todos os anos, desde 1927, elege a pessoa do ano e lhe dedica a sua capa. Curiosamente em 2011, a pessoa do ano escolhida foi: “The protester: from the arab spring, to athens, from ocuppy Wall Street, to Moscow” (O Protestador: da Primavera Árabe para Atenas, de Ocupe Wall Street a Moscou), ou seja, aquele que contesta e protesta para buscar democracia, consolidá-la ou reforçá-la.

A Massa Crítica pode ser considerada, mesmo que indiretamente, como uma das premiadas pela revista americana, até pelo seu tom protestador e contestador que têm causado verdadeira aflição a alguns Políticos Municipais.

Enfim, pode-se dizer que a Massa Crítica de Porto Alegre tem cumprido esse papel protestador de não apenas celebrar a bicicleta como meio de transporte, mas também de debater e provocar a discussão sobre a completa ausência de políticas públicas de mobilidade urbana na cidade.

Por falar nisso, em vez de tentar criminalizar os participantes do Massa Crítica tentando tipificá-los na prática de violação à ordem urbanística, a Prefeitura Municipal e a EPTC bem que poderiam cumprir a Lei Complementar 626, de 15 de julho de 2009 (Plano Diretor Cicloviário Integrado de Porto Alegre) que destina – ou melhor, deveria, mas não o faz – anualmente, no mínimo 20% (vinte por cento) do montante financeiro arrecadado com multas de trânsito para a construção de ciclovias e aplicação em Programas Educativos.

Qual a diferença entre a Massa Critica e a Prefeitura Municipal?

Afinal, as leis não devem ser cumpridas por todos. Pois bem. Então, cumpram-se as leis doam a quem doer.

Cristiano Lange dos Santos é advogado. Especialista e Mestre em Direito, foi Professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da Anhanguera de Passo Fundo. Atua como Procurador Jurídico do Laboratório de Políticas Públicas e Sociais – LAPPUS.

Marcelo Sgarbossa é advogado. Mestre em Análise de Políticas Públicas pela Universidade de Turim (Itália) e Doutorando em Direito pela UFRGS, professor da ESADE e Diretor-Geral do Laboratório de Políticas Públicas e Sociais – LAPPUS.

SUL 21

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Este post reflete tão somente a opinião dos autores Cristiano Lange dos Santos e Marcelo Sgarbossa. 



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121 respostas

  1. Só para encerrar: se vermos as manifestações das pessoas aqui de fora do movimento, vemos que todas elas estão de acordo com a causa de vocês, mas a maioria demonstrou antipatia ao movimento. Por que será isso?

    Primeiro, porque vocês partem de um postulado equivocado ( carros são máquínas de matar e poluir dirigidas por individualistas assassinos,quando os europeus contabilizam 1 óbito/ano em acidentes com cada grupo de 4.360 veículos ou para cada grupo de 9.880 habitantes. Em contrapartida o Brasil, mostra 1 óbito/ano em acidentes com cada grupo de 660 veículos ou para cada grupo de 3.600 habitantes) num pensamento de certa forma infantil, ao associar o carro ao mau e à bicicleta ao bem como nas histórias em que tem o mocinho e o vilão.

    Segundo, porque vocês pensam que precisa causar transtorno para fortalecer a causa. Com isso, não ganharam nada além do MP em cima de voces e a antipatia de muitas pessoas que os apoiaram se utilizassem outra forma para promover uma causa que é válida. Tanto que já falaram aqui “sou a favor da causa, mas contra o movimento”. Conseguiram defender algo que qualquer pessoa com um mínimo de bom senso concordaria e ainda estão com muita gente contra.

    Terceiro, voces chamam ter carro de privilégio quando a maioria da população tem um. São quase 700 mil carros com uma populacao de 1,4 milhao – tirando menores de idade e pessoas muito idosas, baixa pra 1 milhao e temos quase 70% da populacao.

    Querem fortalecer a causa de voces, entao procurem angariar apoio. Incomodar só vai trazer antipatia, uma forma de boicotar o que vocês querem construir. Procurem formas alternativas de divulgar a causa de voces e terão mais pessoas a favor. Procurem a via do “precisamos incomodar a causar um pouco de transtorno” para o cidade que já está cansado numa sexta a noite é escolher o confronto, que nunca dá certo.

    A propósito, eu passo 70% do tempo em São Paulo. Lá nao uso carro nem quero usar porque tenho transporte público. E na maior parte do tempo, ando a pé, mesmo.

  2. Dirigir carro não é perigoso. O que mata é a imprudência dos motoristas. Na Europa praticamente não há acidentes de carro, 97% deles são evitáveis. Culpar os carros pelos acidentes é culpar o objeto, a mesma história do marido traído que vende o sofá.

    O problema de poluição também se resolve com alternativas no que tange ao combustível que é utilizado.

    Claro, a bicileta não poluiu e é melhor pra saúde do motorista. Se possível ( e em termos de possibilidade, tambem entra a distancia a ser percorrida – se você mora a 10km do trabalho, fica um tanto complicado ir de bicicleta) ela é a melhor alternativa e não temos um ambiente adequado para seu uso já que as cidades são planejadas para o carro, o que está errado. E mesmo que o automóvel serja um instrumento que reflete a cultura individualista que somos condicionados a adotar, dizer que ele é mau é um pensamento infantil. A questão é como ele é utilizado.

    “E se te incomodar é o preço que eu preciso pagar para lutar por um transporte público de qualidade, por uma cidade onde eu possa ser respeitado como ciclista, por um trânsito que não mata hordas de gente todos os dias, então eu pago esse preço sem nenhum remorso.”

    Dizer que o transito mata por culpa do carro é ingenuidade. Como falei antes, pesquise sobre estatísticas de acidantes de carro em outros países. E se voce acha que incomodar vai ajudar algo em sua causa, está muito errado. Essa prática de incomodar vai atrair a antipatia e a rejeição de pessoas que estariam do lado de vocês se adotassem outra forma de se manifestar sem causar transtornos.

    Quer apoio de alguem, não causa transtorno a essa pessoa. Barrar o trânsito é como uma pessoas com fome irem saquear supermercados para chamar a atenção da sociedade para os problemas sociais, e se alguem critica-los por isso, falar “veja, apenas furtamos balas, isso custa 10 centavos, não vai causar problemas graves pros mercados” da mesma forma que voces dizem “só bloqueamos as vias por 5 minutos, os motoristas perdem bem mais tempo em engarrafamentos, mesmo…”

    • A culpa de um tiro não é da arma, mas sim do atirador. Da mesma forma, a culpa de um acidente não é do carro, mas do condutor. No entanto, assim como no caso da arma de fogo é preciso reconhecer que o carro é um instrumento perigoso, que precisa ser manuseado com cuidado e com a consciência que seu uso pode tirar uma vida humana, ainda que não seja esse o seu propósito.

      Eu tomei muito cuidado em meu primeiro comentário para não dizer que o carro é mau. Maldade é uma questão de caráter e não pode ser atribuido a um objeto inanimado. O que pode ser atribuído, que é o que eu fiz, é o risco inerente ao seu uso.

      Os motoristas precisam entender que empurrar uma pilha de duas toneladas de aço a mais de 40km/h (estou sendo bonzinho) é uma atividade arriscadíssima, e só com muita atenção e respeito à vida ela pode ser realizada com alguma segurança. Infantil é não reconhecer os perigos da direção.

      • É inválida a comparação o incômodo causado pela Massa Crítica ao roubo de doces. Você precisa lembrar que vivemos num país democrático com o direito a manifestação garantido na constituição cidadã.

        E para ter o seu direito à manifestação, é preciso reconhecer o direito dos outros. Por mais que uma greve dos motoristas de ônibus possa me atrapalhar, eu sei que esse é um direito que eles têm e que precisa ser respeitado. Você não pode invalidar a luta dos motoristas por melhores salários só por causa dos problemas causados pela greve — e olha que esses problemas seriam muito, muito maiores do que os causados por uma Massa Crítica.

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